O Detento, A Ex e A Sacoleira.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

O dia amanheceu e Torquato fez o último risco na parede, sorriu sorrateiramente e contabilizou-os para no final, conformar o quantitativo dos dias e noites passados na cela junto com outros detentos menos afortunados. À noite recebera a notícia de que seria solto por bom comportamento e voltaria à liberdade. Detentos amontoados não o perturbavam, faziam algumas piadinhas, mas ninguém ousava dizer o seu apelido: Girafa. Era grande, forte e pescoçudo. Se dissessem era encrenca na certa!

Naquele mesmo momento, do outro lado da cidade, Michele colocou algumas mercadorias na sacola compradas nas lojas de um e noventa e nove da Rua 25 de março em São Paulo. Partiu rumo ao centro à busca de suas clientes gastadeiras. Aquela mercadoria parecia difícil agradar, mas precisava convencê-las sobre o produto nem que fosse obrigada a usar de suas artimanhas e contar mentiras mirabolantes. Seria bom também que entrosasse com a turma da repartição com o fito de recuperar a autoestima, no entanto naquele dia o “mar não estava prá peixe” e ainda lembrou que o namorado Torquato tinha sido preso há alguns meses, e me relação a isso, achava-se um pouco culpada e envergonhada pelo acontecido. Ele fora preso acusado de furtar mercadoria de uma sacoleira. Veja que coincidência!?

Torquato com o semblante extasiado colocou o giz azul sobre a cama e deixou como presente aos colegas de cela um conjunto de baralho, que os ajudaram há passar o tempo entre aquelas quatro paredes mofadas. Era um passatempo que naquele dia perdeu o sentido. Antes de sair prometeu visitá-los, trazer-lhes cigarros, entregar as cartas que mandariam aos familiares. E, sobretudo, pensava em si e na vida que deixara. Sua besteira em tentar enrolar uma sacoleira agora estava paga. Agora era rever a namorada sacoleira que talvez estivesse na esquina esperando. Iria conversar com ela, pedir desculpas, fazê-la feliz, e até casar.

Michele ao passar pela avenida encantou-se com um porta-jóias, caixinha de música estocada numa banca de camelô. A pequena boneca bailarina dançava sobre o espelho e ela se lembrava de tudo que já quisera ser. Sempre sonhara ser dançarina, mas logo teve que trabalhar exercendo funções pouco criativas, principalmente a de sacoleira. Agora o trabalho valia como ocupação e não pensaria em besteiras. E, afinal, havia coisas boas na vida: o seu namorado. Ele ia sair da prisão e tinha que estar lá. Aquela caixinha de música podia esperar.

Torquato retirou debaixo da cama a Bíblia, recortes de jornais e revistas pornôs, coisas que o faziam lembrar-se de momentos bons e difíceis e até do mundo profano lá fora. Os pôsteres de garotas seminuas ficaram para os colegas. Com a Bíblia debaixo do braço, presente que lhe dera um padre franciscano, releu algumas frases sem nexo que escrevera na parede, onde tentava se iludir dizendo que lá fora não existe tanta liberdade, enquanto que ali, embora entre grades... Ah! Deixa isto prá lá. Com os olhos voltados para o pequeno gradil da janela onde quase não passavam raios de sol, fez o sinal da cruz, pegou seus pertences e suspirou, achando incrível que um dia pudesse vir a sentir saudades daquele lugar horrível.

À porta de uma loja Michele abriu um embrulho e não acreditou. Alguém que não se identificou mandou-lhe entregar um pacote e dentro dele uma caixinha de música. Desconfiada, abriu o embrulho e qual foi a sua surpresa: A caixa era usada e estava toda estragada. E o som nem se fala, arranhava, e a boneca sequer mexia. Que brincadeira de mau gosto! Quem será este imbecil? Questionou injuriada. Perdeu o controle e quebrou o bagulho na cabeça da primeira pessoa que começou a rir. O Azar é que ela era a ex de Torquato. – Foi você imbecil? Perguntou. Ela continuou rindo sarcasticamente, sem dar a menor bola. Parecia sentir-se vingada. E lá se foi àquela manhã primaveril. Cacos de bonecas e outros brinquedos voaram para todos os lados, gritos, empurrões, e elas se atracaram arrancando fios de cabelos que ficaram grudados nas mãos. Chegam os seguranças e todos foram parar na sala da Gerência.

Naquele instante Torquato saía da Delegacia. O sol que mal conseguia passar pelo quadriculado do gradil, lá fora lhe feria os olhos. Parou por instantes para acostumar. Nem sabia bem que rumo tomar. Talvez descer a pé até a próxima esquina, chamar um táxi usando os seus últimos e míseros reais ou seguir à frente em busca de seu destino. Frente à Delegacia parou uma viatura e dela saíram duas mulheres, algemadas. Uma com a cabeça enfaixada onde recebera doze pontos como prêmio, Outra, com o corpinho de Tessália, cabisbaixa, desceu olhando triste para o chão. Era Michele que ao passar por Torquato ergueu os olhos cheios de lágrimas. Ante ao aparato policial e xingamentos de baixo calão vindos de Etelvina, a ex, os dois sequer tiveram tempo de se abraçar e ou mesmo dizer: Oi, meu amor! Torquato meio assustado apertou a Bíblia junto ao peito, pediu perdão a Deus por aquela brincadeira que fizera a Michele, apressou os passos e sem olhar para trás seguiu rumo incerto.

1 comentários:

 
Vanderlan Domingos © 2012 | Designed by Bubble Shooter, in collaboration with Reseller Hosting , Forum Jual Beli and Business Solutions